domingo, 22 de agosto de 2010

6 da manhã

Dentro das roupas rotas e debaixo de uma pele engessada pelo barro que os carros levantam, pé ante pé ia chegando já em casa. As pernas doem, a coluna dói, a cabeça queima com o sol, o sangue seca com a falta d'agua, o coração já bombeia areia e só. Chega em casa e finalmente a realeza pode se manifestar. Naquele momento, sua coroa volta à cabeça. A mentira pode acabar ali, entre aquelas paredes, vocês me perdoem, mas ela reinava. Podia parar de fingir ser doméstica, podia transbordar sua graça. Seus súditos? Quem precisa de súditos? Uma verdadeira rainha governa até os átomos e decidi permitir que eles existam, e sempre os permitia. Fora do mundo fantasioso onde a rainha lava chão, o mundo é até bem justo, entende? Fora os calos e a cara de gente sofrida, quase não se vê sinal da desgraçada fantasia. Ela vibra quando a orquestra começa o sertanejo que ela tanto gosta, corre para aumentar o volume do rádio. Entra no banho, quando sai enrolada na tolha percebe seu príncipe encantado logo ali, ele sabe o que fazer, sempre soube. E fica ali sua majestade dançando e cantarolando no meio da sala, sozinha, mas cercada por todos que a querem tão bem. Enquanto ela gira, o mundo pára, nenhuma poeira, nenhuma patroa, nenhum detalhe imperfeito para a nossa rainha. E ela gira, gira, gira...

E você estará vivo, e isso é o que mais dói.

Ele morreu. Depois disso parece que algo em mim viveu mais. Algo que me corta todo dia, nada morto e sim cada vez mais vivo e cortante, sangue vivo. Gosto de ir até onde ele morreu para ver se aquilo acaba matando o que nasceu com a morte dele, nada adianta. Entendo que seja preciso viver e até acho que posso, mas o que me falta é querer. Não se vive com coisa viva dentro da gente, é injusto Isso sugar de dentro pra fora, não tem repelente. Ou talvez o repelente seja eu, seja você, éramos nós dois, entende?
Tudo acontece, e vai que aconteceu de morrer ali na minha frente, naquele dia em especial éramos tantos que a Verdade não suportaria aceitar aquela relação. Eu sei aonde foi, mas não sei em que tempo você largou da vida de vez, não sei o instante exato, nem lembro suas últimas palavras... Quem escreve isso agora, com certeza é o Isso que foi gerado lá e parasita minhas idéias aqui. Tá tudo meio confuso, vejo as pessoas perguntando do meu luto, me perguntam do seu velório, como, quando, onde? Mal sabem elas... você já foi, foi com o vento, foi com o estalo do encanto e agora paira pelo limbo, entre minha razão e minha fantasia. Não deixaria ninguém violar nossos votos, te olhando com um ar de piedade e saudosismo, um a um iriam me fazer acreditar que você não foi feito de luz e sim de carvão, e isso sim bastaria para eu te deixar vagar por essas ruas correndo o risco de me perder de uma vez por todas.
Sei que você vai poder voltar, cada vez que eu sair de casa será uma nova chance da sua ressurreição. Cada passo na rua e cada curva me lembrará que você pode estar do outro lado da esquina, e que vai me olhar... nesse momento acharei de verdade que é você ali, mas fecharei os olhos, os abrirei de novo e lembrarei que pra mim você morreu.